quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Opressão social no combate à pirataria




Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPOPAI), da Universidade de São Paulo (USP), e co-autor de Estamos Vencendo!: Resistência Global no Brasil (ed. Conrad), junto com Andre Ryoki, Pablo Ortellado desmistifica as implicações da pirataria para a indústria. Primeiro, com a distinção entre a pirataria comercial e a de fins pessoais, que pode servir como “prospecção de mercado” e ferramenta de melhor decisão de consumo. Mesmo dentro da pirataria comercial, defende Ortellado, é preciso considerar o acesso à cultura para as camadas mais pobres da população. “O combate à pirataria para os setores populares não cumpre nenhuma função sistêmica para a indústria, além de restringir o acesso dos pobres aos bens culturais”, diz.

Em entrevista concedida durante o Fórum Livre de Direito Autoral - O Domínio do Comum, realizado no Rio de Janeiro, entre 15 e 17 de dezembro, pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Ministério da Cultura (MinC) e a Rede Universidade Nômade, Ortellado explica ainda os equívocos no uso de números para descrever a pirataria e a necessidade de uma lei de direitos de autor mais equilibrada
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CartaCapital: A lei de direitos autorais vigente no país é criticada por ser obsoleta, por não se adaptar à realidade atual da sociedade de informação. Discute-se sua reforma, e aqui a dúvida: o que uma lei ideal deve contemplar?


Pablo Ortellado: Uma lei equilibrada não é possível porque os tratados internacionais impõem restrições e padrões mínimos de proteção que são excessivos. Tanto a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas quanto o Acordo de Aspectos Relacionados ao Comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual (Trips, na sigla em inglês), da Organização Mundial de Comércio (OMC), estipulam que o período mínimo de proteção do direito autoral é a vida inteira do autor, mais 50 anos. Esse é o limite para menos, mas não há limite para mais. Não podemos criar uma legislação, por exemplo, que limite o direito autoral ao período da vida do autor, mais 30 anos. Para isso, teríamos que sair da OMC e da Convenção de Berna. Essa amarra internacional obriga todos os signatários desses tratados a um padrão mínimo, que é excessivamente alto.

CC: Considerando a perecibilidade dessa obra no mercado?

PO: Devemos lembrar que a vida comercial média de um livro ou de um disco não passa de cinco anos, e estas obras continuam com todas as restrições. Não pedimos que se revise isso, mas que a nossa lei que protege a vida do autor, mais 70 anos, regrida para o padrão mínimo exigido pelas convenções internacionais, da vida do autor, mais 50 anos. Além disso, pedimos que sejam exploradas todas as possibilidades e exceções que limitam a proteção do direito autoral para adequar a nossa lei de direito autoral à realidade da sociedade da informação. A informação precisa circular livremente porque ela é um elemento do desenvolvimento comercial.


CC: Seu entendimento é de que a pirataria permite o acesso à cultura. A indústria, por outro lado, o vê como crime e desrespeito aos direitos de autor.


PO: A indústria fala de pirataria com um sentido muito amplo. Talvez não seja correto chamar de pirataria o compartilhamento de arquivos sem interesses comerciais porque não envolve dinheiro. Mas vamos pensar na pirataria comercial, na venda em camelôs, que é uma transação comercial e um empreendimento de capital de pequeno porte. Quando esse tipo de pirataria é voltado para o segmento popular, ele tem a característica de oferecer às pessoas pobres o acesso a bens culturais digitais. O benefício comercial é enorme: a estimativa é de que se multiplica por sete o acesso à musica e por 2,5 aos filmes. Isso não causa prejuízo significativo para a indústria porque essas pessoas estavam excluídas do mercado, pois não têm meios econômicos para pagar R$ 30,00 em um CD ou R$ 60,00 em um DVD.

CC: O principal argumento, no entanto, é de que a pirataria se transformou em um mercado lucrativo.

PO: Não se trata de um mercado que estava atendido anteriormente pela indústria tradicional, e que se esvaiu com a pirataria. O combate à pirataria para os setores populares não cumpre nenhuma função sistêmica para a indústria, além de restringir o acesso dos pobres aos bens culturais. Isso, sem aumentar o mercado consumidor porque a participação dessa camada no mercado é marginal.


CC: A indústria, por outro lado, parece estar convencida da legitimidade das ações de combate à pirataria.


PO: Isso é opressão social, e apenas a manutenção da ordem. A indústria está sofrendo menos do que alega. Mesmo entre os consumidores ricos, você tem dois tipos de uso da pirataria. Há a substituição de consumo: eu ia comprar um CD recém-lançado, mas deixei de fazê-lo porque o baixei da internet. O problema para a indústria está restrito a essses casos, que estão divididos entre a pirataria não comercial, para uso privado, e a comercial, com venda nas ruas. Por outro lado, há o uso da pirataria como prospecção de mercado para fazer a compra legítima de um bem cultural, no caso de pessoas que se informam primeiro e selecionam o que vão comprar. Esse uso da pirataria também é positivo porque não causa dano à indústria, e, ao mesmo, melhora a qualidade do consumo com decisões de compra muito mais informadas.

CC: A pirataria, por outro lado, é apresentada como um negócio de grandes proporções e ramificações. Não é assim?

PO: A pirataria é de pequena escala. Você pode medir isso com base nas apreensões. No Brasil, temos três órgãos de repressão à pirataria: a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Civil e a Polícia Federal. Os CDs, no caso da pirataria, podem ser queimados [método utilizado, por exemplo, em computadores pessoais] ou prensados [método industrial]. A maioria das apreensões são de CDs queimados, ou seja, feitos a partir de um método doméstico. Não falamos de conglomerados, e o que provalmente supera esse tipo de pirataria é o contrabando da mídia virgem. Nesse caso, é contrabando em média e grande escalas. Aparentemente, a máfia não está ligada com o vendedor de CDs de música da rua.


CC: Mas a indústria utiliza dados, que servem de argumento para o combate à pirataria.


PO: Grande parte dos elementos que orientam o debate vêm da própria indústria. Ela usa muito o dado, por exemplo, de que a pirataria causa prejuízo, gera desemprego e a perda de impostos. São números sempre grandiosos porque são mais impactantes. Esses dados, no entanto, não querem dizer nada porque são calculados de maneira equivocada, mas orientam políticas públicas, reformas legislativas e ações em disputas internacionais. A indústria utiliza cifras de ações das polícias Rodoviária Federal, Civil e Federal, mas de apreensões principalmente de mídias virgens. A indústria soma anualmente os resultados dessas apreensões, multiplicando isso pelo preço médio de mercado e falam que o resultado é o prejuízo para a indústria. Com base nisso, dizem que tal resultado implica na perda de tantos empregos e de arrecadação de impostos. Apreensão, no entanto, não tem nenhuma relação com o tamanho do mercado. Se o governo apreendeu um milhão de CDs, não há como saber quanto o mercado de rua receberá disso. O primeiro erro é fazer a contabilidade do mercado,pela sua própria natureza ilegal. O segundo é pressupor que cada aquisição de um produto pirata equivale à eliminação de uma venda pelos meios tradicionais. Eles desconsideram o fenômeno da elasticidade dos preços: eu compro um CD por mês a R$ 40,00, mas posso comprar muitos mais pelo valor de R$ 2,00. As pessoas compram muito mais CDs e DVDs nas ruas porque os preços são muito mais baixos.

CC: Falta estratégia da indústria para aceitar e se adaptar ao novo?

PO: A indústria agonizou sem se adaptar à nova situação tecnológica do mundo, e optou por reagir à pirataria de uma maneira repressiva. A mudança de modelo poderia ter sido muito suave. Ela agoniza desde o surgimento do Napster, há mais de dez anos. E só há cerca de dois anos que efetivamente começou a desenvolver novos modelos de negócio, com a venda de música digital a preços mais baratos.

CC: Na Espanha, a Sociedade Geral de Autores e Editores (Sgae), empresa privada dedicada à gestão dos direitos de autor de artistas associados, criou o que se pode chamar de “inspetores” culturais. Um casamento, por exemplo, pode ter a visita de um desses representantes, que averigua se as músicas utilizadas durante as cerimônias tiveram seus direitos respeitados. Muitos cidadãos, no entanto, recorreram à Justiça por considerá-lo uma invasão da privacidade. O Brasil poderia trilhar o mesmo caminho?

PO: É a mesma coisa. O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) realiza ações semelhantes, com o agravante de ser uma sociedade arrecadadora nada transparente. Ele cumpre uma função pública, e, ao mesmo, tempo não sabemos qual é a metodologia de redistribuição dos rendimentos. Por outro lado, ele opera dentro das regras atuais, estabelecidas pela lei arcaica que temos no Brasil.


CC: O projeto substitutivo ao PLC 89/2003, PLS 137/2000 e PLS 76/2000, redigido pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG), conhecido como a "Lei de Crimes de Informática", gera polêmica por criminalizar uma série de condutas dos usuários, mesmo não existindo uma lei própria para a internet. Há riscos para os usuários caso o projeto seja aprovado?


PO: Para passar o projeto, estão usando o argumento de que ele combate os hackers, o cibercrime e a pedofilia, o que mais sensibiliza a população. Mas já foi aprovado, há cerca de um mês, um projeto de lei [PL 3773/08, sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em novembro] especificamente para a pedofilia na internet, com amplo apoio da sociedade civil e das organizações de combate à pedofilia. Por isso, não é necessário mais esse argumento de que nós precisamos de uma legislação no código penal que puna a pedofilia porque ela já existe e é moderna. Além disso, o projeto do senador Azeredo foi redigido de modo tão amplo, que vai acabar cerceando diversos direitos civis, que não são necessariamente de direitos autorais, como o direito de comunicação anônima na internet e o de contornar sistemas de proteção.

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